quarta-feira, 27 de maio de 2020

DISTOPIA

Distopia
Tá lá no dicionário:
lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação; antiutopia.
Estou há cinquenta e três dias em quarentena, ops, então não seria cinquentena? E nesses dias refletindo, percebi que já vivia esse processo bem antes de ser denominado isolamento.
Primeiro me isolei do ter!
Segundo me isolei do sem tempo. Há quinze anos anos o meu maior bem não é um carro importado ou os bens modernos do status que mostram que o indivíduo ostenta felicidade. O meu maior bem é o tempo.
Eu viajo para dentro de mim e vejo, que estou onde quero estar, durmo e acordo e posso até escolher fazer nada num sábado ou ir a feira de artesanato ver o colorido de Caruaru. Ostento esse tesouro, ele é meu, mas é invisível aos olhos dos outros, intangível. Somente eu tenho ciência desse valor. Lógico, que o senhor do destino, tem a fama de cruel, que enruga a face dos fúteis, que não enxergam que o que interessa é o seu sorriso e não os veios que a pele forma ao passo que você vai construindo sua narrativa de vida. Acham ele, o tempo cruel, quando derruba a bunda daquela pessoa fitness, que só comia batata doce e ovo cozido, mas não adianta, ela vai cair para todos. Mas voltemos ao meu isolamento. Desde que decidi morar sozinha, e isso tem quase o meio tempo da minha vida, decidi manter a distância dos que me magoaram, hoje sou até menos cheia de ranços, mas esquecida não sou, ha ha ha.
Nas auroras e entardeceres do Agreste, admiro cada manhã que tenho o privilégio de trabalhar no que escolhi fazer e agradeço a Deus por essa dádiva. Escolhi ser passageira e aprecio todos os dias, durante os dezesseis minutos do meu percurso para o trabalho, a paisagem, a temperatura e as cores agreste do meu lugar. Nunca deixo os motoristas ligarem o ar condicionado do carro de aplicativo. O vento tem que bater na minha cara. A cada retorno para minha casinha, onde construo a mulher que vou me tornando, me permito ver as telas pintadas por Deus, em formato de pôr de sol, cada dia uma diferente.
Faz tempo que enquanto o tempo pede pressa e acelera, eu faço hora. É quase que um ritual, chego em casa, ligo o som, minhas músicas e as letras aleatórias que saem das ondas do rádio, me fazem dançar a valsa no ritmo da vida que sempre quis ter.
Nesses quinze anos, telefonei mais para as pessoas, do que elas para mim, algumas nunca nem atenderam, nem retornaram. Pra ser exata, nesses 14 anos, 11 meses e 6 dias, alguns só telefonaram ou apareceram quando estavam em apuros. Os em apuros sempre acolhi e vou acolher, aos que nunca retornaram, sigam, continuem, avante, vão de retro...
Há os que chegam do nada, há os que te olham e te zelam por essa tela aqui e te puxam dessa bolha, do nada. Há quem somente por existir, por compartilhar uma canção preferida sua, já te estoure a bolha e te faça pertencer ao mundo dele.
Ops, voltemos. Nessa cinquentena entre memes, notícias confusas, saudade dos meus pais, que não vejo desde o carnaval e saudade do mar, percebo que as pessoas realmente não merecem o tempo. Ouvia reclamações constantes e superficiais da falta dele pra treinar, falta dele pra estudar, falta dele pra ficar com os filhos, com a família. Ué, agora o povo o tem. E a reclamação é sobre achar atividade pro filho se ocupar, achar cursos pra fazer, de preferencia com certificado, pra comprovar que não ficou sem produzir. E mais uma vez eu digo: o meu tempo eu que uso, eu que escolho o que fazer, eu que lute! E se eu não quiser fazer nada, assim farei, nada! Sem culpas, sem pressão. Estarei cumprindo minhas obrigações do Home office, mas dê licença, minha oração, minha reflexão, estará nos filmes, que verei, nas canções sentidas e no silêncio necessário, que causa barulhos incríveis em mim. Sou tudo que leio e ouço, vejo e desejo.
Em meio a tanto sofrimento, mortes, falta de rituais de despedida entre parentes e amigos, que foram ceifados pelo inimigo corona, percebo ainda pessoas sem dar importância ao que realmente vale. Sem perceber que tudo tem que levar a transformação.
Temos que ter responsabilidade com o outro.
Sim, tenho o privilégio de poder estar em casa, de estar com saúde, mesmo os meus não estando, mas esse mesmo duro e algoz tempo mostrará a você que chegou até aqui me lendo, que só ele abranda e somente ele dará a sabedoria aos cientistas, para chegarmos a cura. É tempo de esperar, se antes sua pressa não lhe deixava enxergar ao redor as devastações no planeta, é nessa parada, nessa espera, que você terá tempo pra perceber que tem chovido mais, porque estamos em casa, os mares têm respirado mais. Se toque! Os peixes dos rios e mares, estão em cardumes fazendo festas e mais festas, porque não estamos importunando eles. Capivaras nem aí se estão fartas, pançudas ou não, desfilam pelo asfalto, livres de nossas condenações a zoológicos. As medusas enormes, lilases, plenas e lindas nos canais de Veneza, lindas para elas mesmas, pois não precisam serem vistas para se acharem assim. Gatos do mato, ahhhh, estávamos acostumadas apenas aos urbanos, tóxicos, abusivos, que bebem e fumam. Esses do mato, mais dóceis impossível. No Errejota, eles deram de aparecer agora, gente!!!
Ah, o tempo! Desde pequenininha, nunca quis fazer logo quinze anos, ser adulta, sempre valorizei ele ali, do jeitinho que era, tudo do jeito dele, da forma dele. Eu que lutei, eu que vivi, eu que venci, mas do jeito dele, respeitando-o. Engraçado, que sempre ouvi que quero as coisas do meu jeito, mas obedeço a ele, saibam viu!!!
Ele me ensinou a ser paciente, persistente, determinada e leal aos meus desejos e necessidades. Ele me deu o sentido de toda calma, valsa, passo, ritmo, dores e vitórias, afinal nem corro mais, pois esse mesmo tempo me deu um joelho limitado. Somente ele ensina.
A volta que o relógio dá em um dia, faz milagres acontecerem, a fração de segundo causa acidentes inesperados, o prazo de uma fatura realiza desejos, constrói casas, organiza festas. Uma folhinha de um calendário que arrancamos, transforma tudo em início a cada mês. A cada folhinha arrancada, temos o dia um pra rever, planejar, consertar, marcar na agenda o que realizamos e seguir.
A cada virada dessa folhinha você terá uma lua cheia iluminando o seu céu, a maré favorecendo a pesca que alimenta os ribeirinhos e sabe quem move isso tudo. O tão temido senhor dos nossos destinos. O tempo.
O tempo não, mas a pressa, a agonia, a falta de atenção causou toda essa distopia, tava tudo fora do lugar. Que consigamos nesse tempo que estamos em espera, aprender a pausar, olhar, escutar e apreciar os instantes que não param.
Só digo!
Saúde para todos!
Texto do dia 07/05/2020.
Simoninha Xavier

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