terça-feira, 23 de junho de 2020

O MULATO

Sabe a referência de amor?
Sabe a referência de liberdade?
Sabe a referência de cumplicidade?
Sabe a referência de colorido na vida?
O verde musgo de um jeep velho do exército, onde eu subia todos os domingos para ir com ele passear. Comer bolo de listrinha amarela, marrom e rosa, a napolitana, com uma caçulinha, na padaria Vale tudo ou mesmo embaixo do pontilhão, onde ele passava os domingos bebendo, eu via cores no preto e branco xadrez do tabuleiro de damas.
O colorido das capas dos vinis de Djavan, Gal, Maria Bethanis, Caetano, Milton, Chico, Martinho da Vila, Roberto Carlos, que ele espalhava na sala, para me fazer aprender a gostar de música boa. Tudo que sei e apurei de ouvido para a música veio dele.
As traquinagens que ele amorosamente me deixava praticar, quando entrava em sua kombi carregada de cosméticos, onde me escondia para ir com trabalhar com ele. Quantas vezes teve que voltar do meio do caminho, pra me devolver em casa, se atrasando pro trabalho...🤭😬😬.
Sempre me senti tão amada por ele, sempre me deu tanta atenção.
Sempre fez parecer que eu era o seu xodó. Não sei se fazia isso por meus irmãos também, mas para mim sempre fez transparecer que eu era a preferida. Sempre me encheu de carinho minha existência.
Um homem de bem, reservado, criativo, amigo, bom camarada e companheiro.
Mesmo quando ouvi alguém dizer que ele estava agindo errado, eu via que era sem maldade, sem intenção, uma espécie de Robin Hood, um justiçeiro.
Mesmo assim se prejudicou muito.
Vícios e ciclos que ele não venceu.
Mas tenho tanta memória boa dele.
A de protetor é a mais importante.
Duas vezes me marcaram muito.
Uma quando fui assediada por um pedófilo e as pessoas não acreditaram em mim. Ele foi as vias de fato com o meliante.
E outra quando um freguês quis me bater, por insatisfação de um produto comprado no nosso mercadinho, ele também foi as vias de fato com o sujeito. Como um heroi!
Ele é tranquilão, paciente, mas não mexa com ele, não o tire do sério, que é a pior coisa, vira bicho.
Era perfeito nas horas que eu gritava.
Nossos lanches nas tardes de trabalho, era a única coisa que eu gostava ali. Conversávamos sobre tudo, sem censura, sem amarras, ressalvas, por entre os sacos de farinha e caixas de leite. Ele preparava o lanche e me chamava quando estava pronto.
O abraço, o toque, é o mesmo até hoje quando nos reencontramos.
Ele agora está doente, e ouvi que sua neta exigiu que ele não virasse passarinho. Mas para mim ele sempre foi passarinho. Me levava para voar para coisas mais lindas que já aprendi.
Calado, bonito, calmo, sempre foram doces voos, que ele me proporcionou. Ao passo que meu pai era austero, ele era brincante, leve, amoroso.
Fui visitá-lo onde nunca queria vê-lo, numa gaiola. É assim que o vi na UTI, preso.
Tive que me vestir de força para não ser molenga, como sempre sou, mas é bem difícil vê-lo ali, sabendo que não poderei ir visitá-lo todos os dias.
Senti sua voz cansada, meio ofegante, mas a sua pele era macia como sempre. Ficamos ali de mãos cruzadas o tempo todo, chega suou de tanto que apertamos. Não sei precisar quanto tempo ficamos, só sei que por vezes o nó veio na garganta para impedir as lágrimas.
O nosso silêncio fala tanto. Vivemos tanto.
Minha mãe só me deu ele de tio, e é o melhor, o mais afetuoso, amigo, parceiro e meigo.
Ele me chama de Nêga, meu amor... amoooooo. O amor mais puro que tenho na minha vida.
Vou terminar isso versando Djavan para ele, que tanto me ensinou a  amar:
“Por ser exato
O amor não cabe em si
Por ser encantado
O amor revela-se.”

Para meu Tio Nado, Meu amor!
Simoninha Xavier

domingo, 21 de junho de 2020

SER BRUXA

O fio da vida vai unindo os seres, seja pelos pensamentos, que às vezes, um dispensa no outro e se mandam mensagens simultaneamente, seja ao ver a cor preferida do outro, um cheiro, uma música que te remete a um momento, enfim, as afinidades, os sentimentos se fundem e geram essa forte sintonia entre alguns.
Eu amo o sol, o céu, a chuva e seu cheiro, cheiro de mato, cheiro de mar, um mar imenso a minha frente, vaga-lumes que são do mato, mas teimam em surgir no meu quarto do nada, as plantas, a lua e o místico poder de viver. Alguém lembrar de mim, só por saber que gosto dessas coisas, fica reverberando aqui no coração. Tanta sintonia assim é de embaralhar-se.
Dia desses um amigo me disse que eu deveria aprender a ser benzedeira ou bruxa (não sabe ele que bruxa já sou), ao passo que no mesmo instante recebi o vídeo acima. Recebi porque esse vento, esse mato, esse fumacê saindo de dentro desse caldeirão, fez a pessoa lembrar de mim. Diga se não é de vibrar a fé no coração? Não estamos sozinhos nunca, somos encontros e sintonia.
De tão forte que foi, sonhei com minha benzedeira da infância, Dona Cotinha. Quando eu era criança e adoecia, minha vó me levava na casa dela para tirar os quebrantos. Ela que pegava seu galho de pinhão do roxo, um dente de alho amassado num paninho bem branquinho em estofo, ou com alfazema, chumaçando minha nuca, minhas costas, minha testa e meu colo. Eu passava dias sentindo o cheiro daquele alho, misturado com o fumaça que saía do fogão a lenha dela, ela tinha um caldeirão de barro, já preto de tanto queimar e do rolo de fumo, que eu via por ali. Era um cheiro misterioso mesmo, cheiro do bem, que podia até ser ruim, mas era um cheiro bom, cheiro místico da cura. Eu sempre queria ficar lá, ir embora era um problema. Minha vó não me deixava ficar, mas eu viveria no batente da cozinha dela pra sempre, perguntando como fazia aquilo, como podia ser tanta paz, como podia curar? Tinha muitas ervas e temperos, mas usava nos paninhos. Como podia ser remédio, sem ser de tomar?
Quando recebi o vídeo acima, vi e ouvi para curar mais uma noite que seria insone, ouvi repetidas vezes até adormecer.
Tinha passado um dia bem difícil, de saudade do meu pai, de amores perdidos, distantes e de estar longe do meu povo. Foi um presente divino, presente que cura, como era minha Cotinha, por isso que ela apareceu no meu sonho. Ela era uma bruxa. Eu achava aquela casinha um universo paralelo, para mim não era do mundo real. Ela ficava no fim de uma ladeira bem íngreme, eu ia descendo devagar, para ir passando a mão nos dentes de leão pelo caminho, nos pés dos tais pinhões roxos e curandeiros, nos pés de mamonas, margaridas, era uma ladeira barrenta, mas bem florida para colorir minha vida. Até chegar na portinha daquela casinha, eu ia guardando tudo para, sem nem saber, um dia contar ao mundo que eu conheci uma bruxa de verdade.
Sempre quis ser bruxa por isso e aqui estou. Há vintes anos, diante do crepúsculo, fui reconhecida pelo Mago Petrus como tal. Mística, fé, mistério, misturas, segredos, cozinha encantada, desejos, pensamentos, intenções, a alquimia dos quatro elementos da natureza me guiando e a conexão com as pessoas, é tão forte, como a que sinto pela pessoa que me enviou o vídeo. É a mesma sintonia que tenho com minha irmã gêmea de alma. Dá licença, que quero passar com o meu sincretismo. Fé, bruxaria, reza forte, terço, velas, simpatias e soprar canela no dia um de cada mês, eis-me aqui! Sei até fazer céu. Se faltar luz, sou mancomunada com vaga-lumes, garanto noites iluminadas/estreladas onde você quiser seja fora ou dentro de casa, sou dessas, baré, ba, cheba!

Não acredita? Isso é pura ficção mesmo, risos...
Simoninha Xavier

segunda-feira, 15 de junho de 2020

BOLO PUDIM TODO PROSA

Acordei, era frio e cinza o dia!
Chuva, muita chuva, vários atendimentos por fazer remotamente.
Fiz meu desjejum, quatro laranjas e o mais belo tom de amarelo enchia meu copo. A tapioca e o coalho branquinhos, contrastavam com as pedras transparentes de gelo, flutuantes no suco.
O som era de uma rádio local. É preciso seguir, vamos ouvir notícias para se atualizar. Viver é preciso...
Atendimentos feitos, usuários inadimplentes, agora querem que o tempo urja em
plena pandemia. Vamos urgir.
Entardeço no agreste limpando o quarto e entre arrumações e recordações, vou abrindo caixas e estante, revisitando fotos, cartões, bilhetes amarelados, eita que isso desordena os sentimentos, Ave maria!!!!
Saudades e momentos eternizados em fotografias, um rebuliço de sensações.
Em meio aos livros, papeizinhos, receitas soltas, bilhetes sem datas, abro alguns livros e as dedicatórias são lidas com as vozes dos donos... Elas aquecem o coração. Como era mais leve a era analógica. Papeis amarelados, mas decorados e alguns ainda com cheiro invadindo a caixa.
Eis que acho meu caderno de receitas. Está lá: Desde 1985.
Tempo que arriscava as primeiras misturas no mundo mágico da cozinha.
Bolos, tortas, lasanhas, empadinhas de queijo de Tia Nery, bolo Pelé de Tia Zelita, eis que chego no bolo pudim.
Para tudo, vou fazer...
Tem receita mais mágica que essa? Um bolo e um pudim ocupando a mesma forma no forno. Uma calda com açúcar que jamais pode queimar, um liquido clarinho e espumante do pudim e a massa marrom do bolo de chocolate. Você joga ali, inadvertidamente um sobre o outro e eles se encarregam de se ajustarem e respeitarem um a consistência do outro, um a cor do outro, um o sabor do outro. Um que lute para ser pudim o outro para ser bolo fofinho, somente para se deixar embevecer pela calda caramelada que vem lá do pudim, pois com sua leveza e delicadeza, chegou ao topo desse efeito sendo o primeiro a aparecer.
O resultado dessa receita é que o quarto só termino de arrumar amanhã.

Simoninha Xavier

sexta-feira, 12 de junho de 2020

O DOZE DEPOIS DE TRINTA

Sem presente, nem presença.
Sem flores, nem bombons.
Sem jantar, sem vela.
Sem ele, nem ela.
Talvez isso seja no infinito.
Talvez nem infinito exista.
Talvez seja numa quinta dimensão.
Daí nem lembrarão que é dia doze. 
Serão esquecimento.

Simoninha Xavier

Ha 30 anos é assim!


terça-feira, 9 de junho de 2020

TRABALHO REMOTO

Trabalho remoto.
Remoto meu pensamento a que?  A quem?
Remota mesmo está a minha vontade.
Remota às vezes sinto minha força.
Mas (r) existência aqui estou eu!


Simoninha Xavier

sábado, 6 de junho de 2020

TODO SÁBADO É ASSIM

Escrevo meu fazer diário, na certeza de misturar a paz com esse sábado.
Só sei dizer, só sei traçar em linhas, aí douro cebolas, fervo meu sentimento,
meio que confitando a dor, pra ver se ela reduz, como na alquimia da receita.
Mais um almoço e a incerteza do que é o amanhã, sendo a quimera o melhor
ingrediente para os desejos. 

Simoninha Xavier

MEU PAI AGORA É LUZ

As suas caras e bocas, seu humor espirituoso, seu dialeto próprio, que compilei num mini dicionário, seu carinho, amor ao próximo.
Tudo ficou em mim Pai!
Tudo tá guardado e arraigado no meu jeito de ser.
Nesses dias que passamos com o início dessa dor, de te perder em matéria, vi uma onda gigante de amor se formar em volta de você e minha mãe, que foi o que me manteve firme até aqui.
Amigos de perto, de longe, amores que nem sabia ainda da existência, ressurgiram para me ajudar a suportar isso. Agora estarás na imortalidade, sim, tudo que vivemos, tudo que fomos um para o outro, será pra mim amor imortal.
Há dias atrás, falei do quão você era bacana, honesto, íntegro, caridoso e gentil. Deus leu e te quis perto dele. Entendo bem Ele. Sabe escolher bem suas companhias.
Pai, em todas as minhas conquistas via você vibrando. Você me ajudou e me impulsionou aos pulos. Para os saltos que eu dava, sabia que teria alguém pra olhar e me segurar, caso fosse pro chão.
O sentimento de gratidão é tão grande, que nesse momento paira a certeza de que tudo valeu a pena.
Que agora sua caminhada será de mais luz ainda. Capitão Bichara, Vovô Sebastião, Vovó Esther, Angelita, Molequinho e o mulato estarão a sua espera. Só tô pensando na festa que vai ser esse céu, com os amigos que foram antes de você!
Por aqui, voltarei a ser espera pelo próximo dia em que nos encontraremos de novo. Seja pra ouvir radinho juntos, comer uma galinha gorda, pra falar de política ou para eu fazer anotações de novos verbetes que você tenha inventado nessa dimensão que vai estar agora.
Serei espera pelo seu sorriso, pelo seu arrastado de chinela para avisar que está chegando no quarto, pra chupar a primeira manga que caia na temporada ou simplesmente pra sentar na beira da cama e conversar miolo de pote, que amamos.
Pai, obrigada por ter sido sua Pata, Patinha ou perna de inhame.
Obrigada por me amar tanto mesmo sendo eu o que sou e quem sou!
Sua Pata!

Simoninha Xavier