O
tempo era o início da década desse século, mais precisamente no ano de dois mil
e quatro. Entre girafa, leão, coelho e até camelo eu me esbaldava no jeito
folião mais moderno de ser, vestida com meus abadás, atrás de trios elétricos,
com seus afetados cantores, que nem precisavam usar capa para serem super-heróis,
pois passavam mais de quatro horas cantando para essa multidão zoológica, que ocupa
Vitória de Santo Antão.
Eu vivia o prazer de ser Girafa, apesar do meu tamanho, e de pertencer numa maratona árdua, ao Coelho, ao Leão e ao mais nostálgico, encantador, colorido e autêntico bloco que eu já participei na vida, o da Saudade, que exigia uma fantasia especial, a sua.
Eu vivia o prazer de ser Girafa, apesar do meu tamanho, e de pertencer numa maratona árdua, ao Coelho, ao Leão e ao mais nostálgico, encantador, colorido e autêntico bloco que eu já participei na vida, o da Saudade, que exigia uma fantasia especial, a sua.
Era
um ano muito feliz, mais ainda do que os outros três que já havia passado ali
naquela cidade onde a bicharada se encontra em pleno carnaval. Tinha encontrado
com meu finado irmão e sua esposa, na transição de um bloco pra outro e ele me
falou que eu parecia uma santa, kkk... Eu tava de índia e ele me achou com cara
de santa, hi hi hi. Acho que já tinha tomado alguns goles de batida de maracujá
que o bloco estava oferecendo.
Quem
me conhece sabe como fico quando danço, me perco de mim, o que eu sou se afoga,
de maneira atroz, passa a ser a minha droga essa paixão por carnaval. Começo e
não sei parar, não bebo, nem fumo, meu único crime passa a ser o vício de não
poder para de dançar.
Por
outro lado amo observar às pessoas, seus comportamentos, as coisas, as
confusões de namorados, os descompassados embriagados, os homens bonitos, as
paqueras, os amassos, o percurso que particularmente nessa cidade, além de
abrigar uma fauna de blocos, tem uma flora linda. É encantador, pois é cheio de
praças com árvores e canteiros verdes.
Os
blocos passavam pela avenida principal da cidade, Mariana Amália, a rua da
matriz, percorria toda a cidade e a volta para a etapa final do percurso subia
a ladeira da Duque de Caxias, que tinha um lindo flamboyant, que encandeava de
tão vermelho que ficava quando florescia, estávamos eu e meus eufóricos
companheiros de folia, quando param o batuque, o repique, a guitarra e a
percussão... E ouve-se um estendido psiiiiiiiiiiiu! E ao som do sax bem
baixinho, o vocalista avisa: - Pessoal, peço a compreensão de vocês para que
fiquemos em silêncio, pois existe nesse momento um gigante enxame de abelhas na
árvore da Duque... Eu tava na no pé da ladeira, depois de mim uma multidão, em
seguida o trio lá em cima. Eu via o mais que super-herói vocalista cantar: -
Por isso chame, chame, chame, chame gente cantando quase que num sussurro até
chegar ao ponto de só os surdos como eu entenderem, pois sei ler lábios...
E o
chame, chame, chame de gente foi se calando por conta do flamboyant vermelho que
ingenuamente se deixou denegrir pelo enxame africano.
Aturdido
pelo possível ataque desse bloco que não estava na programação animalesca da
cidade, o povo silente saía do cordão de isolamento para dar espaço à alegoria mais
linda que vi na festa momesca até então: O Carro do Corpo de bombeiros, nossa! E que Corpos, hi hi hi.
Eles ali na minha frente desfilando garbosamente, com seus
fardões e capacetes, passando lentamente para não espantar a colmeia negra e eu
perplexa pela beleza desse instante: O chame, chame, chame gente quieto,
ouvia-se apenas o barulho do motor do carro alegórico que enchia minha vista,
do motor do trio elétrico, e o zumbido daquele denso exército inimigo negro que
permissivamente se aninhavam no rubro
flamboyant.
Às
vezes eu ouvia o barulho de algum pássaro que teimava em perturbar esse momento
onde uma massa de pierrôs, colombinas, palhaços, piratas e bichos variados se
mantinham concentrados para não atrapalhar a operação de captura desse mais
novo bloco, até então intruso na cidade. As carinhas de felicidade se
transformaram em máscaras de terror, menos a da índia aqui, que enfeitiçada
começou a observar que com o passar do corpo de bombeiros, os foliões iam
voltando pra dentro do cordão de isolamento num silêncio que mais parecia um
vácuo naquele carnaval mágico. As pessoas andavam e não faziam um ruído que fosse.
A sensação que se tinha é de que nem ar tinha...
Já
no domínio da coalizão, vi os bombeiros invadirem aquele gueto resistente à
luta e a ladeira ali, repleta de foliões perplexos, observando o ato de heroísmo
deles. O povo parecia um prisma colocado ao sol, as cores se mexendo num
movimento furtacor.
Não se sabia ao certo qual enxame estava sendo
capturado, o negro ou o colorido por tamanha acuação destes. Isso durou alguns
minutos, o espetáculo que se formou a minha frente eu jamais esquecerei. O
flamboyant foi ressurgindo com suas flores tão vermelhas quanto antes, enquanto
os bombeiros iam encaixotando aquela multidão de abelhas africanas, até não sobrar
uma sequer...
Somente
quando o carro alegórico concluiu sua apoteótica apresentação e saiu da
passarela, ouvi novamente o som do sax bem baixinho, agora o nervoso herói
vocalista, dizia: - Pessoal! Rezemos: Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador...
Isso mesmo ele rezou a oração do anjo da guarda e em seguida embalou a minha
canção preferida de carnaval de todos os tempos:
Quanto riso! Oh quanta alegria! Mais de mil palhaços no salão... Em lágrimas de emoção vi o chame, chame, chame gente em pleno movimento e a ladeira se transformar de fato num prisma em turbilhão. E o que é sinônimo de agitação, folia, anarquia, se transformou pra mim num dos momentos mais encantadores que já vi num carnaval. E, diga-se de passagem: Eu havia parado de brincar um tempo antes por conta de uma violência que presenciei dentro de um bloco na capital.
Quanto riso! Oh quanta alegria! Mais de mil palhaços no salão... Em lágrimas de emoção vi o chame, chame, chame gente em pleno movimento e a ladeira se transformar de fato num prisma em turbilhão. E o que é sinônimo de agitação, folia, anarquia, se transformou pra mim num dos momentos mais encantadores que já vi num carnaval. E, diga-se de passagem: Eu havia parado de brincar um tempo antes por conta de uma violência que presenciei dentro de um bloco na capital.
Ali pude ver novamente poesia e cor. Era terça-feira, meu
ultimo dia na cidade e o meu ultimo carnaval. Uma memória encantadora. Vi um
flamboyant ingênuo, que mesmo tendo a fantasia mais linda para aquela ocasião,
resolveu se vestir de negro e se frustrar por não poder lançar mais um bloco de
bichos na cidade: O Abelha.
Simoninha Xavier